I PARTE (Processo Religioso) * Foi preservado o português da época (1921) A Captura O Era uma noite de quinta-feira do 14 de Nisan, ou de 06 de abril de 783 da fundação de Roma (1). Quem, nessa noite, se tivesse achado na cidade de Jerusalem e precisamente nas adjacendias do Palacio do Governador romano e dos Summos Pontificies, teria, sem duvida, notado um movimento, uma agitação que contrastava altamente com a calma habitual que, a essas horas avançadas, costumava desfructar o bairro mais aristrocratico da cidade dos Prophetas. Grupos de individuos armados de espadas e páus (2) iam e vinham em attitude impaciente, provocadora, resoluta. De subito, uma companhia de soldados, sob as ordens de um Tribuno, á qual se juntaram servos e subalternos dos grandes sacerdotes e phariseus, tambem armados, sahiu do Pretorio, tomando, apressadamente, a direcção noroéste. A lua (3) que nesse momento brilhava num céo recamado de estrellas, e envolvia, num nimbo de prata, a antiga capital da Palestina, batia em cheio, como uma lamina de aço, sobre o aspecto sinistro de um homem que, açulado pelo demonio da cubiça, parecia ser, si não o chefe, certamente o guia daquella turba eivada de odio e sedenta de sangue. Era Judas de Keriot, o qual, seguido pelas praças e pela famulagem subornada, atravessando de leste a oeste a cidade alta, e tomando, depois, o rumo norte, passou o Cedron e parou um instante ao sopé do Monte das Oliveiras, a poucos passos dos muros que cercam o Gethsemani. Entrou. Não lobrigando alma viva, dirigiu os passos para o lado norte onde uma especie de corredor descoberto, cavado, pela natureza, na pedra, dava acesso a uma gruta de 17 metros de comprimento, 9 de largura e 3,50 de altura (4). O personagem que se procurava e que nesse instante, com a alma crivada de angustias, se mantinha prostrado num canto, ergueu-se ao rumor dos passos em tropel, e esperou, resignado, a sorte que o odio recalcado dos seus inimigos lhe havia preparado. Estava para ter inicio o desenrolamento de scenas de horror, previstas, com admiravel clareza, oito seculos antes, pelo Propheta Isaias, scenas que deveriam ter, como remate, a mais clamorosa infamia que registra a historia da humanidade. Á vista dessa matula armada e guiada por um scelerado que, até bem poucos momentos, honrára com a sua amizade, Jesus (porque era Elle) sentiu-se profundamente ferido e disse: _ Viestes capturar-me como si eu fora um ladrão; entretanto, todos os dias eu estava comvosco no Templo e nunca me prendestes. (5)Mas, já que procuraes a mim só, deixae em paz estes meus amigos. (6) Referia-se aos discipulos que levára comsigo. Poucos momentos depois, Jesus era amarrado e, no meio de uma algazarra infernal, levado ao Palacio de Annaz. Qual fôra o motivo da captura de Jesus? Apparentemente algum crime religioso ou político de que os seus inmigos queriam tornal-o responsavel. Na realidade, porém, no fundo de todo esse zelo hypocrita em defesa da Religião ou do Estado, apparecia claro e insophismavel um sentimento de odio, filho do ciume incontido pela popularidade que alcançára Christo na Palestina. A majestade de seu porte, a graça ineffavel que transluzia do seu rosto, a ternura incomparavel do seu coração, o seu desvelo desinteressado em pról dos infelizes, a boa nova que annunciava e que vinha abrir, á sociedade, descortinos vastos e desconhecidos, a guerra sem quartel que, com um desassombro mumca visto, movia á ambição e hypocrisia dos potentados, esta e um sem numero de outras bellezas moraes de que andava exornado e que não se pódem traduzir em linguagem humana, arrastavam, após si, as multidões que, em momentos de irreprimivel entusiasmo, o acclamavam, delirantemente, Propheta e Rei! Accresce que, ultimamente, um grande acontecimento acabava de abalar todos os espíritos. Achando-se, seis dias antes (8 de Nisan), Jesus, na cidade de Bethania, e tendo ahi, morrido o seu amigo Lazaro, ressuscitára-o com um prodigio. O facto extraordinario echoara, com a rapidez do raio, de um canto a outro da Palestina, e cercára Jesus de uma aureola tão luminosa que, quando, dois dias depois, entrou em Jerusalém, fôra alvo da mais estrondosa e imponente manifestação popular. Este delirio suscitado por Jesus, vinha encrustar outra camada de odio no coração dos seus inimigos que, em precipitado concluio, juraram perdel-o: _ Que havemos de fazer? perguntavam uns aos outros, este homem faz muitos prodigios, si o deixarmos continuar, todos crerão nelle: "Quid facimus? Quia hic homo multa signa facit? Si dimittimus eum sic, omnes credent in eum" (7). E a prisão de Jesus, effectuada na noite do 14 de Nisan, não era outra cousa sinão a consequencia do trama urdido no diabolico comicio. Eil-o, pois á presença de Annaz (8) amarrado como um malfeitor. Não se comprehende e não se justifica a razão pela qual a esbirralha quis arrastar Jesus á presença de Annaz que não cobria, havia muito tempo, nenhum cargo publico. Talvez, como opina Cornelio a Lapide, tomassem essa resolução por méra deferencia a seu genroCaiphás, Grande Sacerdote naquelle anno. Seja como fôr, o que não padece duvida, é que Annaz fôra a alma de toda a conjura movida, secretamente, contra Jesus. De engenho vivo, astucia pouco commum, ambicioso em extremo, alcançára de Sulpicio Quirino, Governador da Syria e da Judéia, o título de Grande Sacerdote, cuja funcção permanecera quasi dez annos. No dia da prisão de Jesus, havia mais de três lustros que não ocupava esse supremo cargo. Á sua influencia, porém, e especialmente, ao seu genio intrigante e ao ouro que sabia profusamente espalhar em occasião opportuna, deve-se a nomeação, feita por Valerio Grato, do seu genro José Caiphás o Grande Sacerdote. (9) Estando, pois, Jesus, perante Annaz, este, embora não lhe assistisse o direito, entendeu submettel-o a um interrogatorio preliminar, enquanto no Palacio de Caiphás se estavam tomando, ás pressas, as providencias para um interrogatorio mais completo e um julgamento mais formal. Interrogatorio Preliminar Começou a interrogal-o sobre seus discipulos e sua doutrina. Jesus nada tinha que responder a quem, sem se achar investido do Supremo Sacerdocio, pretendia devassar-lhe a vida. Entretanto, por nimia condescendencia, entendeu responder-lhe dizendo: _ Eu sempre falei em publico e sem mysterio. A minha doutrina foi prégada na Synagoga e no Templo para onde vão todos os judeus, e nunca préguei ás escondidas. Porque, pois, me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que eu ensinei, estes devem saber o que eu disse. (1) O Evangelista S. João, de cujo Evangelho extrahimos esta passagem, não nos diz qual o effeito destas palavras sobre o espirito de Annaz. A situação do astuto e Grande Sacerdote, porém, havia de ser bastante critica. Jesus appelava, não para o testemunho dos seus discipulos que o acompanharam por toda a parte, pois teriam sido suspeitos e não se lhes teria acreditado, mas para o testemunho dos seus proprios inimigos perante os quaes tantas vezes prégara no Templo e na Synagoga. Qual testemunho mais insuspeito desde que houvesse empenho em se querer descobrir a verdade? A lição, que o improvisado Juiz não pedira ea que não estava preparado, mas que acabara de receber, havia de tornal-o bem pequenino e ridiculo aos olhos dos circumstantes. Então um servo bajulador, provavelmente no intuito de livral-o de uma situação tão humilhante, descarregou uma tremenda bofetada no rosto de Jesus dizendo: _ Desta maneira é que respondes ao Pontificie? A este acto de inqualificavel vilania, limitou-se, mansamente, a dizer: _ Si falei mal, dá testemunho desse mal, mas, si falei bem, porque me maltratas? Nada mais acrescenta, o Evangelista, a respeito desta scena selvagem, a não ser que Jesus, por ordem de Annaz, foi logo conduzido ao Palacio de Caiphás, para ser novamente interrogado e julgado pelo Synhedrio. O Synhedrio Podiam ser duas horas da madrugada de sexta-feira,quando Jesus foi levado á presença de Caiphás. Numa das salas do Palacio do Grande Sacerdote acabavam de improvisar uma especie de tribunal, no qual, pela rapidez dos acontecimentos, não poderam tomar parte sinão poucos membros do Synhedrio. O Synhedrio era, entre os judeus, uma especie de Supremo Tribunal onde eram examinados e julgados os crimes de heresia, apostasia, idolatria, falso propheta, etc. Era composto de 71 membros divididos em 3 Camaras: A Camara dos Grandes Sacerdotes, a dos Anciãos e a dos Escribas ou Doutores da Lei. * Foi preservado o português da época (1921). Da Camara dos Grandes Sacerdotes que Tomaram Parte no Processo de Jesus Caiphás - Presidente do Supremo Tribunal. Annaz - Sogro de Caiphás.
Da Camara dos Anciãos
Da Camara dos Escribas
Ao todo 39 membros Contavam-se 36 crimes contra os quaes era comminada a pena de morte. Para 17 havia a pena de morte pela lapidação, para 10 pela fogueira, para 2 pela espada, para 6 pelo estrangulamento. Segundo Chauvin, de cuja obra extrahimos os nomes conhecidos dos Juizes que tomaram parte no processo de Jesus, o Synhedrio, quando completo, constaria de 72 membros, divididos em Tres Camaras de vinte e trews membros cada uma (e neste caso teriamos o Sinhedrio completo com 69 membros). Capecelatro (Errori del Renan nella visita di Gesú, Cap. XIX) dá tambem o numero 72. O mesmo numero dá Cornelio a Lapide, deva attribuir-se a um simples cochilo, e que o mesmo numero admittido por Chauvin e Capecelatro não seja conforme a verdade. De facto, o mesmo Cornelio a Lapide, no mesmissimo Commentaria in Mattheum, Cap. XXVII, nota ao 1º. versiculo, dá o Synhedrio completo com 70 membros, e outro tanto faz em outros logares (Comm. in Num. C. XI, nota an vers. 16 - Comm. in Deut. Cap. XVII, nota ao vers. 9). De outra parte é sabido que Deus ordenou a Moysés de subir o Sinai com Aarão, Nadab e Abiu, filhos maiores de Aarão e mais setentaanciãos. Exod. XXIV, 1). Mais tarde Deus ordenou a Moysés de escolher setenta homens como seus auxiliares no governo do povo. (Num. XI, 16). Estes setenta não são aquelles que acompanharam Moysés á subida do Sinai a que allude o Exodo, mas parte daquelles e parte de outros escolhidos posteriormente entre o povo. Estes ultimos (os dos Números) foram os que formaram o Synhedrio em numero de setenta, numero que se conservou, em seguida, até aos tempos de Christo. Parece, porém, que o Presidente do Synhedrio não era dos 70, porque o officio dos 70 consistia em auxiliar o Supremo Pontifice. "Manserunt, diz Cornelio a Lapide (Num. XI, nota ao vers. 16) hi septuaginta deinceps, et continuos habuere successores, etiam in Chanan, sed carentes spiritn prophetico. Nam solo consilio suo aderant Pontifici, qui summus Hebraeorum statuitur judex, erantque ejus consiliarii. Unde consilium horum (dos 70) cum Pontifice summum erat, et ab Hebraeis vocatum est Sanhedrim, graece Sunedrion.... Atque hi seniores fuerunt qui in magno illo suo Sunedrio, sive concilio, Christum mortis reum proclamarunt, et Pilato occidendum tradiderunt". Sendo assim o Synhedrio teria sido um Tribunal composto de 71 membros inclusive o Presidente, ou o Summo Pontifice. Esta opinião nos parece apreciavel. De facto si dos membros que compunham o magno Conselho, setenta careciam de espirito prophetico, e sabido como é que o dom da prophecia era privilegio exclusivo de quem se achava, revestido do Supremo Sacerdocio, e não sendo Summo Sacerdote nenhum dos setenta, é forçoso admittir alêm dos 70, mais um, que, occupando a Suprema Dignidade, fruisse desse dom divino. Este era o Summus Judex que, cercado pelos seus setenta auxiliares, formava o Supremo Tribunal ou Synhedrio. Uma tal opinião é, aliás, corroborada por Felten (Historia dos tempos do Novo Testamento, Vol. II., Vers. ital. de L. E. Bongiovanni, Cap IX, pag. 27 e 28) e por J. Fouard (Vita di N. S. Gesu Christo, 2ª. Edic. Vers. ital. sobre a 18 franc. Vol. I. pag. 39 e Vol II, pag. 263). Segundo os quaes o Synhedrio completo constava de 71 membros. Estes tomavam assento em forma semecircular. A cada um dos dois extremos do semicirculo se assentava um secretario, encarregado, um, de tomar nota, durante o processo, de tudo que apparecia em favor do accusado, outro de tudo que depunha contra o mesmo. O accusado era cercado por guardas, ou officiaes subalternos munidos de cordas e tiras de couro, promptos, ao primeiro signal, a amarrar e a bater no réo. Nas questões de direito civil ou cerimonial, a votação começada pelos mais notaveis anciãos; nas questões, porém, de direito criminal, onde se tratava de uma pena capital, a votação começava pelos mais moços, com receio de que estes se deixassem suggestionar pelos mais velhos. Nos crimes passíveis de pena de morte, tinham que tomar parte no Jurypelo menos 23 membros. Si pela votação resultasse a condemnação do réo por um só voto de maioria, então se acrescentavam mais dois membros, e não se alcançando, com isso, mais apreciavel maioria, continuava-se nesse processo até que o réo era absolvido ou condemnado por 36 votos contra 35. * Foi preservado o português da época (1921). Jesus na presença de Caiphas Como dissemos, pelas duas horas da madrugada de sexta-feira, se formou o Conselho presidido por Caiphás. Até ahi o despeito, a inveja, o odio tinham sido os unicos factores que tinham entrado em campo para a captura de Jesus. E agora que o mais estava feito, agora que se achava em poder de seus inimigos, em presença dos seus juizes, tornava-se necessario definir-lhe a responsabilidade, assacando-lhe um crime que fosse passivel de pena capital. Outros elementos, pois, tinham que entrar em jogo, isto é, o sophisma, a mentira e a calumnia. Tudo isso, porém, sob uma tal qual apparencia de formalidades legaes. E como estas exigiam que o crime fosse, antes de tudo, comprovado pelo depoimento de testemunhas, deu-se começo aos trabalhos procedendo-se á inquirição das testemunhas. Inquirição das Testemunhas Submetteram-se, pois, ao interrogatorio algumas não só notoriamente falsas, como dizem S. Matheus e S. Marcos, (1) mas cujo depoimento era até contradictorio. (2) Sobre um tal depoimento não era absolutamente possivel construir um crime; apresentaram-se, porém, duas que depuzeram: _ Nós o ouvimos dizer: Posso destruir o Templo de Deus e reedifical-o em tres dias. _ Que respondes a isto? - pergunta intimamente satisfeito, o Presidente do Conselho. Jesus não respondeu. Sabia perfeitamente que o Synhedrio jurara a sua morte, e que,portanto, qualquer tentativa de defesa tornar-se-ia completamente inutil. Manteve-se, pois, num silencio calmo e ao mesmo tempo imponente. Os papeis pareciam trocados, observa a este proposito Le Camus, "o accusado conservava a magestade solemne de um Juiz, e o Juiz mostrava a agitação febril de um accusado". Era preciso sahir desta situação, romper esse silencio, mais expressivo e eloquente do que uma defesa. E visto como não lograria, pela ameaça ou pelo medo, arrancar uma unica palavra de Jesus, Caiphás recorreu a outro expediente: _ Eu te peço, - então elle disse como que inspirado, _ eu te peço em nome de Deus vivo a nos declarar si tú és o Christo filho de Deus! Jesus não ignorava que uma resposta affirmativa equivalia, aqui, a um decreto de morte. Mas era necessario não deixar a minima duvida sobre a sua personalidade, era preciso proclamar uma verdade que era como que o eixo moral de toda a sua vida. De modo que: _ Tu o disseste, - respondeu solemnemente, _ Eu o sou! A taes palavras, rasgando as vestes: _ Blasphemia, blasphemia! - Gritou o Presidente do Conselho. _ Não ouvistes? Que necessidade temos nós de testemunhas? _ Reus est mortis! é reo de morte! - foram as unicas palavras que echoaram lugubremente sob as abobadas da grande sala. E Jesus foi condemnado á morte. Desde esse momento (podiam ser tres horas da madrugada) Jesus foi entregue á soldadesca, sob cuja custodia foi conservado até ao amanhecer, hora em que se reuniu, novamente, o Synhedrio. Era, pois, o 15 de Nisan, ou 7 de abril de 783 da fundação de Roma, dia de sexta-feira, e cerca das 05 horas da manhã, quando todos os membros do Supremo Conselho, se achavam reunidos no Gazith. (3) Apesar da solemnidade com que se quiz revestir o Synhedrio, tratava-se apenas de confirmar a sentença de morte pronunciada contra Christo, na madrugada daquelle dia, por uma fracção da assembléia. O interrogatorio, portanto, a que foi submettido Jesus, durou breves instantes. _ És tu o Christo? - foi-lhe perguntado. _ Si disser que o sou, - respondeu Jesus, _ vós o não acreditareis. Si eu vos interrogar, vós não me respondereis, nem me deixareis em liberdade. _ Mas, afinal, és tu o filho de Deus? _ Vós acabaes de dizel-o, eu o Sou! E mais nada. Era uma segunda edição, aliás compendiada, do interrogatorio precedente, com a differença de que aqui, não houve inquirição de testemunhas. Mas era o sufficiente. A assembléa alcançára o seu fim, isto é, ouvir da própria bocca de Christo a confissão de que era o Filho de Deus, o que constituia, para elles, delicto de pena capital. O Processo religioso estava terminado, e ia-se, em seguida, dar inicio ao Processo civil. Jesus na presença de Pilatos Aos tempos de Archelao, tendo a Judéa perdido a sua independencia, tornou-se Provincia Romana. Administrada por um Governador, era, este, o arbitrio supremo a quem eram deferidas todas as causas capitaes. Na occasião do Processo de Christo, o Governador da Judéa era Poncio Pilatos. Descendente de uma nobre familia romana, soube em tempo insinuar-se no animo de Tiberio, de quem desposára uma parenta, Claudia Procula, e no anno 26 de nossa era obteve o governo da Judéa, em substituição a Valerio Grato. Habitualmente residia em Cesarea, capital official e praça forte situada á beira mar. Em momentos de grande affluencia popular á capital da Judéa, se transferia á Jerusalém, como medida preventiva contra possiveis desordens. Ao Synhedrio, desde que os judeus perderam a sua autonomia, era vedado condemnar á morte a quem quer que fosse, tornando-se, este, um direito exclusive do representante de roma. (1) Eis a razão pela qual o Synhedrio, na manhã de sexta-feira, se empenhava com tanto interesse para que a sentença de morte, pronunciada por elle, contra Jesus, fosse confirmada pelo Governador Poncio Pilatos. Este, quando residia em Jerusalem, morava no Pretorio, contiguo á Torre Antonia, ao noroeste do Templo. Para p Pretorio, pois, foi levado Jesus, pelo Synhedrio e pelo povo. Podiam ser seis horas da manhã. O marulho popular a uma hora tão matutina, e em frente do seu palacio, não deixára de causar uma sensação desagradavel a Poncio Pilatos. Adivinhou logo, porém, de que se tratava quando viu levado á sua presença o proprio Jesus. O Interrogatorio Os membros do Synhedrio e o povo ficaram de fóra. O accesso ao Pretorio, á casa da residencia de um extrangeiro, e extrangeiro oppressor, teria sido para elles uma acção abominavel, e especialmente nesse dia. Por isso só entraram os soldados. Pilatos foi ao terraço, e de lá, dirigindo-se ao povo: _ Que fez este homem? - perguntou. _ Qual foi o seu crime? Esta pergunta, assim ex abrupto, concisa e sem preambulos, que transformava, de repente, os membros do Synhedrio, de Juizes como pretendiam ser, em accusadores, irritou o povo que, com mal contida arrogancia, vociferou: _ Si elle não fosse um malfeitor, não o teriamos levado á tua presença! Semelhante resposta parecia pôr em termos claros a questão. Os judeus queriam impôr, a Pilatos, o papel de carrasco, reservando para elles o de juizes. Pilatos, porém, não pensava deste modo, e subtrahindo-se habilmente, á cilada judaica: _ Si é assim, - exclamou, _ visto que o julgastes, condemnae-o tambem, de accordo com a vossa lei. _ Mas não nos é consentido condemnar á morte ninguem - observou a turba. Era uma confissão publica e bem humilhante que ao astuto Governador custára apenas uma ironia. O desfecho não era tão facil como a princípio parecia aos judéus, e a causa parecia tomar um caminho tortuoso e incerto. Que fazer? Não havia outro meio sinão assumir o papel de accusadores, e por isso gritaram: _ Encontramol-o amotinando o povo, aconselhando-o a não pagar o tributo a Cesar, e declarando-se Christo-Rei. Era evidentemente uma calumnia. Mas assim assacavam a Jesus dois crimes: um religioso para os judeus, por significar a palavra Christo, Filho de Deus; outro politico para o representante de Roma, por se ter proclamado Rei. A esta accusação Pilatos pareceu impressionar-se, e levando Jesus aos seus aposentos particulares, perguntou: _ Então tu és o Rei dos judeus? - E Jesus: _ Isso dizes de ti mesmo, ou t'o disseram de mim? Como si dissesse: Entrou realmente no teu espirito alguma suspeita que eu ambicione a realeza, ou estás apenas repetindo a accusação dos meus inimigos? No primeiro caso, tu que ha bastante tempo és governador da Judéa, estás, melhor do que qualquer outro, em condição de saber si algum dia pensei em introduzir qualquer novidade politica que pudesse alterar a ordem do Estado. No segundo caso, compete a ti, como juiz, em dar o devido apreço a uma accusação, que não tem outro motivo sinão o odio dos chefes da Synagoga contra mim. (1) Pilatos, porém, não sabia o que esperavam os judeus, confiados nos seus Prophetas. _ Porventura sou eu judeu? - tornou elle. _ Tua gente e os Pontifices a mim te entregaram, que fizeste? _ O meu reino não é deste mundo, - continuou Jesus; _ Si o fôra, pelejariam os meus para que eu não fosse entregue aos judeus, mas não é daqui o meu reino. _ Assim, tu és Rei? - acudiu Pilatos. _ Tu dizes que sou Rei, - respondeu Jesus _ para isso nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; todo o que é da verdade ouve a minha voz. _ Que cousa é a verdade? - perguntou Pilatos. Mas não esperou pela resposta. Convencido de que tinha que fazer com um sonhador ou um sabio, e não com um criminoso, dirigiu-se ao terraço e de lá falou: _ Trouxeste-me este homem como agitador popular, como perturbador da ordem, mas, examinado por mim, nada encontrei que fundamentasse as vossas accusações. Não acho, nelle, crime nenhum. _ Como póde ser assim? - acudiu a turba. _ Pois si não ha recanto da Judéa e da Galiléa que não tenha sublevado com a sua doutrina!! O nome da Galiléa, pronunciado, aqui, não sabemos si intencionalmente ou não, calou no espírito de Pilatos. Era precisamente a Galiléa a terra onde o amor á independencia e á liberdade se mostrava sempre mais accentuad; era de lá que apparecia a scentelha da revolta que, num instante, se transformava em labareda caudal, propagando-se, incendiando toda a Palestina, e sublevando as massas contra o insupportavel e odiado jugo romano. Perguntára, pois, Pilatos, si Christo era galiléu, e obtendo resposta affirmativa, pensou logo em tirar proveito desta circumstancia. A Galiléa, diz Le Camus, "offerecia lhe um dessesexpedientes de que si utilizam sempre os homens politicos. Entrevia logo a possibilidade de enviar o accusado do Forum aprehensionis ao Forum originis, ou de domicílio". E este expediente offerecia-lhe uma dupla vantagem: desembaraçar-se de um processo complicado e importuno e reconciliar-se, por este acto de deferencia, com o Tetrarcha da Galiléa, que, por motivos provavelmente de jurisdicção, mantinha, com Pilatos, relações um tanto frias. Este Tetrarcha era aquelle mesmo Herodes que mandára assassinar, na propria prisão, a João Baptista. Herodes Governador da Galiléa desde a morte de seu pae (1), fixava, ordinariamente, sua residencia, ora em Tiberiade, ora em Serapides, nas proximidades do Thabor. Nesses dias, porém, se achava em Jerusalém para assistir ás festas de Paschoa, e occupava o Palacio ao norte do Monte Sião, parte da cidadella de David. A historia nol-o apresenta como homem sensual, supersticioso, covarde e cruel. Do Pretorio, foi, pois, Jesus levado a Palacio de Herodes. Para este, a surpresa foi duplamente agradavel. Era, como dissemos, da parte do Governador da Judéa um acto de deferencia, si não de justiça, para cm o Tetrarcha, reconhecendo, neste, o direito exclusivo de julgar, no caso vertente, o seu jurisdiccionado. Neste ponto, a sua vaidade ficara satisfeita. Mas havia outro motivo de satisfacção. Ouvira falar das obras extraordinarias de Christo e esperava, já que a sorte o protegia, satisfazer a sua curiosidade, obrigando Jesus a praticar, em sua presença, algum prodigio, passando assim, em companhia dos seus intimos, um quarto de hora divertido. Enganava-se, porém. Ás perguntas que lhe dirigia, Jesus não se dignou responder uma unica palavra. Irritado Herodes, e querendo, de certa maneira, vingar-se da decepção soffrida, deliberou tratal-o como louco, ordenando que lhe puzessem aos hombros um manto branco, symbolo de suprema dignidade em uso entre os Monarchas Hebreuse os Magnatas de Roma. Assim trajado, teria servido de alvo ás zombarias e remoques da garotada insolente. Entretanto, si o incestuoso ascalonita tivesse tido, naquelle momento, a intuição clara do futuro, teria previsto que esse Rei de burla, exposto, nesses dias, nas praças publicas de Jerisalém, aos apupos da patuleia, dahi a não muito, e no correr dos seculos vindouros, havia de se tornar, na verdade, o monarcha incontestado de milhões de corações, de todas as raças e de todos os paizes, de todas as castas e de todas as hierarchias, desde o jornaleiro mais humilde, até ao Soberano mais poderoso, desde a intelligencia mais acanhada, até ao mais rutilo genio! Teria visto que, só ao pronunciar o seu nome adoravel, milhões de joelhos haviam de se dobrar reverentes, e as cabeças mais altivas de imperadores e Reis haviam de se inclinar em signal de respeito e veneração! Mas Herodes, naturalmente, nada previu, e reenviou Jesus, assim trajado, ao Governador Pilatos. A CONDEMNAÇÃO (Jesus de volta a Pilatos) Muito expressivo era o reenvio de Jesus. Significava claramente que, no entender de Herodes, Jesus era innocente. Convicção que coincidia perfeitamente com a de Pilatos. Christo podia ser um visionario, um allucinado, nunca, porém, um revolucionario, um turbulento, de quem devessem temer as instituições publicas. Convencido desta verdade, e no intuito de salvar Jesus, depois de terem, de novo, levado Christo á sua presença: _ Vêde - exclamou, dirigindo-se do terraço aos membros do Synhedrio e ao povo. _ este homem é por vós accusado de revolucionario, perturbador da ordem, entretanto Herodes e eu, depois de o ter examinado, nada descobrimos que mereça a morte. Portanto, sujeital-o-ei a uma punição e pol-o-ei em liberdade. (1) Ha, além disso, o costume de livrar todos os annos, no dia de Paschoa, um criminoso. Temos um, denominado Barabbas, preso por crime de morte. A quem quereis, pois, que eu dê a liberdade, a Barabbas ou ao Rei dos judeus? _ A Barabbas, a Barabbas - uivou a turba, acirrada pelos Principes dos Sacerdotes e pelos anciãos do povo. (2) - Tolle hunc, morra Jesus, et dimitte nobis Barabbam, e solta Barabbas. (3) _ Mas que quereis que eu faça do Rei dos Judeus? _ Seja crucificado! _ Mas que mal tem feito elle? _ Seja crucificado! - trovejou a turba allucinada (4) Era evidente que o medo começava a apoderar-se do espirito de Pilatos. Os inimigos de Jesus iam ganhando terreno, e os Principes dos Sacerdotes, colleando entre o povo, açulavam-n'o para que reclamasse com insistencia, a morte de Jesus. (5) Luta terrivel travava-se na sua consciencia. Possuia provas indiscutiveis sobre a innocencia de Christo. Sabia perfeitamente que a guerra movida contra Elle não tinha outro motivo senão a inveja, o ciume, o odio. Condemnar, portanto, um tal homem a morte, teria sido uma clamorosa injustiça. Cansado de lutar, ordenou que lhe trouxessem agua, e lavando as mãos em presença do povo: _ Eu sou innocente- exclamou - do sangue deste justo, ficará por vossa conta. _ O seu sangue foi-lhe respondido - cáia sobre nós e sobre nossos filhos! Pilatos tentou um ultimo esforço. Mandou flagellar Jesus e depois, esperando mover a compaixão do povo, lh'o apresentou, do terraço, dizendo: _ Eis aqui o homem! Falhara, porém, o effeito. A turba em vez de compaixão, redobrou de furor e gritou: Crucifige, Crucifige! Á cruz! Á cruz! _ Pois então crufificae-o vós, - retrucou exasperado Pilatos, _ porque, repito, não encontro, nelle, culpa alguma para condemnação: eu não acho neste homem crime algum. (6). E os judeus: _ Nós temos nossa lei, e pela nossa lei deve morrer, porque se fez a si proprio Filho de Deus. Pilatos tornou-se mais pensativo. Filho de Deus? Certamente, é um homem extraordinario! E si fosse um protegido dos Numes? A sua morte seria, sem duvida, vingada. Os coriscos de Jupiter, o dardo envenenado de Marte, as fléchas esfusiantes de Phebo, não faltariam contra o audaz que se atrevesse a ferir de morte a um amigo dos Deuses. O governador romano era supersticioso; era, pois, possivel que semelhantes pensamentos lhe agitassem o espirito. Emfim, reentrou no Pretorio com Jesus, a quem pergunrou: _ De onde és tu? Jesus não respondeu. _ Não me respondes? Porventura ignoras que tenho o poder de pôr-te em liberdade ou mandar-te cruficar? _ Não terias esse poder - ponderou Jesus - si não te fosse dado do alto. Quem, porém, me entregou a ti, commetteu peccado maior. Realmente, Pilatos estava envolvido neste processo mais pela pressão dos judeus do que por sua vontade. Seu desejo, estava visto, era salvar Jesus. Os judeus perceberam o perigo e lançaram mão de um ultimo expediente. _ Si o puzeres em liberdade - gritaram - accusar-te-emos de inimigo de Cesar. Não póde ser amigo de Cesar, quem defende um indivíduo que pretende ser Rei dos Judeus. Esta ameaça cahira como um raio sobre a relutancia de Pilatos. A questão já estava mudada: do terreno religioso passára para o terreno politico, transformando de repente, a face do processo. De facto, não se tratava mais de um visionario que queria ser Deus, crime com que nada tinha a vêr com o Direito Romano, mas sim de um homem que pretendia ser Rei de um Paiz e de um Povo, havia annos, sujeito ás aguias romanas. Uma tal pretensão constituia o crime de lesa-magestade, contra o qual se mostrava sempre inexorável a lei do paiz, especialmente imperando Tiberio, cioso em extremo da sua autoridade. Era o perduellio, delicto contra a segurança do Estado ou contra a ordem publica, reprimido severamente desde os tempos de Tulio Hostilio (7), contemplado nas XII Taboas que, segundo Justiniano, condemnavam o réu á morte (8), e na Lei Julia que, segundo o mesmo Justiniano, alcançava sempre quem de tal delicto se tornasse culpado. (9) A accusação, pois, era gravíssima, e o delicto que assacavam a Christo era o maior de todos os delictos, omnium accusationum complementum, diz Tacito. Accresce que, justamente nesses dias, Tiberio acabava de dar um exemplo de rigor, condemnando, por tal crime, Antistio Vetere, de Macedonia. (10) É de notar, além disso, que na época em que se desenrolavam os acontecimentos que estamos narrando, reinavam o despotismo mais deprimente e o servilismo mais vergonhoso. Honra, dignidade, fortuna, desgraças, perseguições, tudo dependia da vontade de um só, o Imperador de Roma. Sabia-o perfeitamente Pilatos. Elle mesmo devia o governo da Judéa á protecção de Tiberio, como Antipa, Agrippa I, Agrippa II, o deviam, respectivamente, a Augusto, Caligula e Claudio. Os que, pela sua posição social, podiam manter-se altivos e independentes, rastejavam vilmente como vermes da terra. O servilismo casara-se com a bajulação, e esta se alastrara de uma maneira tal, que alcançara os caracteres mais rijos, as individualidades mais em destaque do paiz. O Senado Romano, que, em tempos não muito remotos, era cercado de uma magestade na verdade imponente, o Senado, que outr'ora, apoiado na sua suprema autoridade, com mão firme e segura regia, soberanamente, os destinos da nação, estava , agora, reduzido a um miserável rebanho de carneiros e de bajuladores abjectos. Svetonio conta-nos, a este respeito, baixezas taes, que envergonhariam um escravo. Houve senadores que, por méra adulação, correram a pé, diversos kilometros, atraz do coche do Imperador Calígula, querendo dar a entender que não lhes teria sido possível viver longe da sua presença. Outros, jantando com elle, levantavam-se, de repente, da mesa, para, de avental posto, terem a dita de servir-lhe de copeiros; ao passo que outros ainda consideravam como uma honra, uma felicidade invejavel, poderem comer deitados aos seus pés. E o Augusto, Optimo , Maximo, o Immortal, o Divo Imperador, sabia recompensar, não raro, tão nojenta abjecção, com as mais cortantes affrontas. Quando lhe dava na vontade, mandava expulsar do Circo, na hora do espetaculo, e a vergastas, os personagens mais conspicuos do patriciado romano (11). E a bajulação não circulava sómente pelas altas, mas, e com maior razão, percorria também as médias e infimas camadas sociaes. Interessante é o que, a proposito nos diz, numa das suas satyras, Juvenal: Era o rico fulano um tysico transparente que mal se regia em pé? Aos olhos de seu bajulador era um Hercules. Accendia, o poderoso, a chaminé ao esfusiar dos primeiros ventos d'inverno? O seu bajulador era o primeiro a concordar e affirmar que a estação era extremanente rigorosa e corria á casa para envergar a capa forrada de lã. Acenava, o rico, ao calor? O seu alter ego á suava em bagas. Este até achava uma certa graça no modo de arrotar daquelle, e não raro solicitava a honra de tirar auspicios, do que o válido deixava no fundo do vaso nocturno. (12) Bastaria esta satyra para definir o carater moral de uma época. Qualquer acção, pois, por mais torpe que fosse, era licita, comtanto que della resultasse um beneficio pessoal. Pilatos era, portanto, o homem do seu tempo: egoísta, adulador, covarde e, na occorrencia, cruel. Perante a ameaça formal feita pelos judeus, extremeceu e recuou de medo. Ja outras queixas tinham sido levadas, contra elle, perante Cesar. Mas uma accusação como esta, teria sido mais que sufficiente para, na melhor das hypotheses, condemnal-o a aquae et ignis interdictio, isto é, abrir-lhe as portas do desterro. E nem por sombra teria cooperado para este fim. Era, pois, preciso satisfazer, acariciar a féra, o povo; era preciso adulal-o, e, sobretudo, era preciso conservar-se, custasse o que custasse, no Governo da Judéa. Afinal, que lhe importava a vida de Christo? Que fosse sacrificado, visto que o exigia a sua tranquilidade. O dever tinha que ceder ao interesse, a justiça havia de immolar-se em holocausto das suas conveniencias pessoaes. Tornava-se, Jesus, um obstaculo que lhe atravessava o caminho? Desembaraçar-se-ia delle! Condemnando Jesus á morte, adulava Tiberio, agradava ao povo, conservava o Poder e assegurava o futuro. Condemne-se, pois! Pilatos, tomara, definitivamenbte, a sua resolução, e desde esse momento, Christo, estava perdido. Segundo a praxe, a sentença havia de ser ouvida pelo proprio accusado. Por isso Pilatos mandou vir á sua presença Jesus, que se conservara no Pretorio. Outrosim, a lei exigia que a sentença fosse dada em publico, e em logar elevado. Era este o Lithostrotos. Pilatos subio ao throno e mostrou Jesus ao povo, dizendo: _ Eis o vosso Rei. _ Á cruz, á cruz! - trovejou a multidão. _ Condemnarei o vosso Rei? _ Nós não temos outro Rei a não ser Cesar. A victoria estava ganha; o povo deicida tinha triumphado! Pilatos lavrou o decreto fatal; Ibis ad crucem! (13) e entregou, immediatamente, Jesus aos seus encarniçados inimigos. Duas horas mais tarde, sobre o cimo cruento do Golgotha, pendia, de um madeiro infame, o corpo livido do filho de Maria! No momento, porém, em que o Grande Justo estava para exhalar o ultimo alento, no instante em que a morte estava para lançar seus braços á Víctima Divina, a natureza inteira pareceu, de repente, tomada de indescriptível pavor! O sol escondeu sua face de luz (14), um subito terremoto causou um abalo espantoso (15), fenderam-se as rochas, rasgou-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum, e uma immensa desgraça, como uma capa de chumbo, pareceu, por momentos, cobrir a vasta superficie da terra! Do alto do Calvario, feito êrmo pela fuga dos homens e mergulhado em trevas profundas, ouviu-se um grito de suprema angustia. Era o grito do Suppliciado, e era o ultimo: Jesus tinha expirado!... II Parte - O Processo segundo Renan Estribados na narração evangelica que, segundo o proprio Renan, se impõe ao nosso respeito pela sua authenticidade historica, procuramos expôr, com toda a fidelidade, tudo quanto affecta, substancialmente, o famoso Processo em que fôra envolvido, e por que fôra condemnado, Jesus Christo. Por essa simples narração, parece evidente, a todo o espirito sereno e imparcial, que Jesus fôra preso, julgado e condemnado com violação flagrante da lei e da justiça. O Processo, pois, fôra nulo de pleno direito e por conseguinte a pena capital comminada e executada contra Jesus, não fora outra cousa sinão um verdadeiro assassinato legal. Pelo que nos consta, tem sido esta, durante 19 seculos, a opinião daquelles que têm encarado i parcialmente a horrenda e inolvidavel tragedia que teve o seu cruento epilogo no topo do Calvario. Não podia,portanto, deixar de causar profunda e amarga impressão o apparecimento da obra Vida e Doutrina de Jesus Christo de J. Salvador, onde, pela primeira vez, se tem tentado justificar o iniquo procedimento do Synhedrio relativamente ao Processo de Jesus Christo, e defender sua suposta legalidade. A obra de J. Salvador cahiu, felizmente, no olvido, mas por desgraça veio substituil-a uma outra que encontrou, e encontra ainda, acolhimento enthusiasta, especialmente entre o publico de curta leitura e de senso critico mui limitado. Alludimos á Vida de Jesus de E. Renan. (1) E é justamente por isso, é por sabermos que é mais lida e conhecida, que porfiamos em chamar a attenção do leitor sobre as insinuações, sophismas, falsidades de que lançou mão Renan notocante especialmente ao Processo de Christo, soccorrendo-se, para isso, embora não o declare, da obra do Salvador. (2) Antes disso, porém, recordemos, succintamente, as phases principaes do Processo. Jesus é preso na noite de quinta-feira, 14 de Nisan, ou 6 de abril. Nessa mesma noite de quinta para sexta feira, é submettido a dois interrogatorios: o primeiro teve logar cerca de meia noite na presença de Annáz; o segundo, mais ou menos ás 2 horas da madrugada de sexta, nos aposentos de Caiphás, e perante este ultimo. Naquelle, nada se descobriu em desabono de Christo; neste, compareceram testemunhas que accusaram Jesus de crime contra a existencia do Templo, affirmando que Christo dissera: "Eu posso destruir o Templo de Deus e reedifical-o em tres dias". Mesmo assim, o depoimento era contradictorio. O proprio Caiphás julgou-o insufficiente; este procurou, pois, outro rumo e perguntou a Jesus si era realmente o Christo filho de Deus. E Jesus respondeu: Eu o sou. Caiphás não precisou de mais nada. Considerar-se Filho deDeus era crime de pena capital, e no mesmo instante foi julgado por alguns membros do Synhedrio e condemnado á morte. Na mesma sexta feira, desde as cinco horas até cerca das onze da manhã, Christo foi submettido a quatro interrogatorios, a saber: O primeiro, perante o Synhedrio reunido, ao completo, ao amanhecer daquelle dia. O segundo, perante Pilatos, mais ou menos ás 7 horas da manhã. O terceiro, perante Herodes, das oito para as nove. O quarto, de novo perante Pilatos, das dez em diante. No 1º. , o Synhedrio confirmou a sentença de morte, pronunciada por alguns membros ás duas horas da madrugada. No 2º. , Pilatos o achou innocente. No 3º Herodes não descobriu crime nenhum. No 4º, Pilatos confirmou a sua opinião anterior sobre a innocencia de Jesus, amedrontando, porém, por uma ameaça popular, condemnou-o á morte. Pois bem, Renan, na sua obra citada, começou a mystificar, sophismar, embrulhar e alterar os factos, desde o primeiro interrogatorio. Cedamos-lhe a palavra: " Começou o interrogatorio, diz Renan; compareceram perante o tribunal muitas testemunhas preparadas de antemao, segundo o processo inquisitorial exposto no Talmud". Este topico é nebuloso. Antes de tudo, que testemunhas são estas? Qual é o seu valor moral? Renan muito intencionalmente nada nos diz, a este respeito; apenas nos conta que ahi estavam preparadas de accordo com o processo inquisitorial. Mas o processo inquisitorial não admittia testemunhas falsas. Taes, entretanto, eram as testemunhas em questão; o Evangelho fala claro: "E o Príncipe dos Sacerdotes e todo o Conselho buscaram algum testemunho falso contra Jesus para o poderem matar, e não achavam, ainda que muitas falsas testemunhas se apresentassem. Vieram finalmente duas testemunhas - duo falsi testes - para depor, etc, etc" (Math. XXVI, 59,60, 61) contra Jesus "depunham o falso... e o depoimento das testemunhas era contradictorio; falsum testimonium ferebant adversus eum... t non erat conveniens testimonium illorum". (Marc. XIV, 57,59) Em que estavam, pois, de accordo, as testemunhas, com o processo inquisitorial daquelle tempo? Si Renan entende dizer que o comparecimento e o interrogatorio eram exigidos pelo processo inquisitorial, nos diz uma banalidade; e si entende insinuar, e aqui é em que está o ardil de Renan, que testemunhas e depoimentos estavam de conformidade com as disposições legaes contidas no processo inquisitorial, é falsissimo, porque não era admittido o depoimento de falsas testemunhas, como não era admitido o depoimento contradictorio. Continuemos. "As palavras fataes, diz Renan, que Jesus tinha realmente pronunciado - Eu destruirei o templo de Deus e o reedificarei em três - foram citadas por duas testemunhas". As duas testemunhas a que alude o philosopho francez, são as ates duas falsas testemunhas duo falsi testes, que citamos acima e de quem fala S. Matheus. Renan, que tanto gosta de apontar a origem evangelica de suas citações, devia indicar tambem esta, e especialmente esta, que é de uma gravidade excepcional. Mas, está claro, não lhe convinha, e não lhe convinha pela simples razão, que em todos os quatro Evangelhos não ha uma unica palavra que alluda este facto. Jesus nunca disse tal, sabe disso Renan, mas a verdade ás vezes prejudica. As fataes palavras foram pronunciadas, não por Crhisto, mas sim pelas testemunhas que desvirtuaram uma expressão proferida por Jesus, desde o inicio de sua vida publica, e , precisamente, no dia em que expulsára os profanadores do templo. Jesus expulsára-os exclamando: "Nolite facere domum Patris mei, domum negotiationis" (Joan 11,16) , isto é: não façaes da casa de meu Pae, uma casa de traficancia! De meu Pae? pensaram os judeus escorraçados. Quaes são, perguntaram-lhe, as tuas credenciaes, que signal nos apresentas, para que acreditemos que tu és o Filho de Deus? Foi então que Jesus respondeu: "Destrui este templo, e em tres dias o restabelecerei". Jesus, observa a este proposito S. João, serviu-se, aqui, de uma linguagem figurada, entendendo, por templo , o proprio corpo; como si dissesse: matai-me, e depois de morto resuscitarei; a minha resurreição será o signal. As testemunhas, pois, em presença de Caiphás, quizeram alludir a esta ciscumstancia, mas desvirtuaram, por completo, as palavras de Jesus, dando-lhes um sentido muito diferente. E, Renan, sabe perfeitamente disso. Sabe quanta perfídia ha no fundo dessa interpolação voluntaria das duas falsas tstemunhas. Podia, pois, narrar os factos adstringindo-se, rigorosamente, é verdade historica, mas, repetimos, isso não convinha ao filho de Voltaire. Si assim fôra, não teria podido, aqui como no resto, forgicar uma Vida de Jesus ad usum Renan, isto é, um romance onde a phantasia não raro supre a realidade, onde o meigo nazareno devia figurar com um caracter, mixto de grandezas e baixezas, de heroismos e covardias, um Jesus, enfim, em cujos traços physionomicos havia de prevalecer o cunho, não da sinceridade e lealdade dos evangelistas coévos, mas da doblez manhosa e astuta do racionalista do seculo XIX. Mas vamos adiante. "Segundo o judaísmo orthodoxo, assim se exprime Renan, elle era um verdadeiro blasphemador, um destruidor do culto estabelecido; ora a lei pune esses crimes com a morte" . Christo, pois, na opinião do romancista francez, teria praticado um duplo crime: um por ter blasphemado do Templo; outro por se ter declarado Filho de Deus. E em apoio do seu asserto cita o dispositivo legal consignado no Levitico e no Deuteronomio. Mas que diz a lei? Eil-o: "Leva o blasphemador fóra do acampamento, e os que o ouviram blasfemar, ponham-lhe as mãos sobre a cabeça e depois todo o povo o apedreje... E quem tiver blasphemado o nome do Senhor, seja condemnado á morte" . É do Levitico. (Levit. XXIV, 14,16) Não citamos, ipsis verbis, o dispositivo do Deuteronomio porque, abrangendo doze versiculos, nos tomaria muito espaço; está, porém, condensado nisto: - Deus comndena á morte o falso propheta e quem allicia o povo para determinal-o a prestar culto aos falsos deuses. (Deut. XIII, 1 e seg). Pois bem, Christo cahiria na violação do dispositivo legal contido no Levitico? Era cabivel a accusação feita contra Christo, isto é, ter elle blasphemado do Templo, e portanto de Deus? Um criterio seguro sobre a culpabilidade de Jesus só podia descansar sobre o depoimento de testemunhas dignas de fé. Mas as testemunhas citadas para isso eram falsas, dil-o categoricamente o Evangelho: duo falsi testes (Math. XXVI, 60) , cujo depoimento era contradictorio: "Et non erat conveniens testimonium illorum". (Marc. XIV, 59.). Por lei um tal depoimento e da parte de taes testemunhas, não só era desprovido de valor , como determinava penas contra quem o fizesse. A lei era clara a este respeito: "Non loqueris contra proximum tuum falsum testimonium": Não levantarás falso testemunho contra o teu proximo (Exod. XX, 16). "Non factes calumniam proximo tuo: Não levantarás calumnia contra o teu proximo. (Levit. XIX, 13). E si depois de um exame escrupulosissimo, diligentissime perscrutantes, os juizes chegassem a possuir provas de que a testemunha levantára o falso testemunho contra o réu, deviam condemnar a falsa testemunha á lei do talião, isto é, á mesma pena a que teria sido condemnado o imputado, uma vez comprovado o crime: "Reddent et sicut fratri suo facere cogitavit" (Deut. XIX, 16 e seg). Pois bem , contrariamente a quanto determinava a lei, as testemunhas foram deixadas em paz. Apesar deste menosprezo legal, o seu depoimento não foi tomado em consideração, em que pese a Renan, que parece ligar-lhe toda a importancia. E a prova disto está no facto que o Presidente do Conselho, não achando nelle, um ponto de apoio, uma base sufficiente para condemnação, recorrera a outro expediente, interpellando Jesus si era, na verdade, o Christo, Filho de Deus. A resposta affirmativa de Jesus era justamente o crime que se procurava, pois, segundo a orthodoxia judaica, constituia delicto digno de morte. Foi, portanto, condemnado pelo Synhedrio, não porque tivesse blasphemado do Templo, mas, e unicamente, porque se declarára Filho de Deus. Esta declaração tornára-se, de repente, o alvo dos ataques, o nucleo para o qual havia de gravitar toda a questão, a arma da qual haviam de se servir os seus inimigos para votal-o á morte. E foi, com effeito, por isso, repetimos, que foi condemnado. O que não significa, aliás, que a condemnação fosse legal; pelo contrario. Porque é verdade que as passagens do Levitico e Deuteronomio, citadas por Renan, condemnam á morte a blasphemia, o suborno, o falso propheta, mas falta justamente provar que o Christo incorrera nestes crimes. Era blasphemador, porque se declarara Filho de Deus? Era falso propheta? Pretendera levar o povo á adoração de um Deus que não fosse o Deus de Abraão, Isac e Jacob? A Assembléa era obrigada certificar-se, e por isso estudar desapaixonadamente e maduramente a questão. Não podia, por ventura, ser realmente, Christo, aquelle msmo, de quem, havia seculos, os Prophetas vaticinaram a vinda? Os signaes característicos que lhe definiam a prsonalidade, encontravam-se, na verdade, na sua pessôa? Eram perguntas que deviam ter sido feitas e deveriam ter motivado serias e demoradas reflexões. Que haviam dito, de facto, os Prophetas a respeito de Crhisto vindouro? Que teria nascido de uma Virgem (Isaias VII,14), na Cidade de Belém (Micheias V, 2), precedido por um Precursor cuja voz se fazia ouvir no deserto (Isaias XL, 3). Que faria justiça ao pobre, e sua lingua seria espada de dois gumes contra a prepotencia dos impios (Isaias XI, 4). Que estabeleceria, em vz dos velhos, um Sacrificio novo e grande, consagrado em todo o universo (Malachias 1,11). Que, montado sobre uma jumenta, entraria triumphante em Jerusalem (Zacharias IX, 9). Que teria sido vendido por trinta dinheiros (Zacharias XI,12). Que lhe teriam arrancado a barba e teria sido esbofeteado, cuspido, flagellado (Isaias L, 6). Que se teria tornado o opprobrio dos homens, a abjecção da plebe, objecto de zombaria e escarneo (Psalmos XXI, 6-7). Que seria desprezado como o ultimo dos homens, que se tornaria o homem das dôres, ferido, humilhado, supportando tudo, como um cordeiro, sem emitir um lamento (Isaias LXIII, 3 e seg) . Que na hora do perigo teria sido abandonado pelos seus discipulos (Zacharias XIII, 7), por um destes trahido. (Psal. LIV, 13-14). Todos estes signaes encontravam-se em Christo e constituiam os traços mais firmes e typicos de sua physionomia moral. Havia seculos os olhares dos Patriarchas e dos Prophetas estavam convergidos para Elle; a cada passo era invocado, deseJado, suspirado; os ritos, as cerimonias, os symbolos, não eram sinão o Prefacio de uma obra colosal, cujo protagonista havia de ser o Christo-Redemptor. Como, pois, não conhecer á sombra das figuras, ao retrato dos Prophetas? Ao menos houvesse uma attenuante em favor do Synhedrio, allegando-se, por exemplo, a ignorancia das Sagradas Escripturas. Mas como admitir isso nos membros de um Supremo Tribunal? E ainda que, por cumulo de condescendencia, se queira, em parte, admittir uma tal anomalia, é preciso não se esquecer que um terço do conselho era formado de Escribas, isto é, de Doutores da Lei, quer dizer, de technicos e profissionaes. Estes, sem dúvida, haviam de conhecer as passagens da Sagrada Escriptura que se referiam á pessoa de Christo, e , de outra parte, o Jesus coevonão lhes podia ser estranho. De facto, cousas extraordinarias deram-se em Belém, na época de seu nascimento. Mal attingira a edade de doze annos, fôra visto na Synagoga entr os Doutores da Lei, assombrando-os com o seu saber. O Portento das bôdas de Chanaan, desde o inicio de sua vida publica, abrira-lhe, de par em par, as portas da celebridade. Os prodigios que, durante tres annos, operara na presença de innumeras tstemunhas, levaram seu nome tão alto que, desde as praias da Idumea até as rochas do Antilibano, desde o cabo do Carmelo até ás nascentes do Jabboé, não havia quem o conhecesse. Assistia, pois, a estes membros do Comselho, o estricto dever, antes de se abalançarem a uma sentença condemnatoria de tanta gravidade, de consultar os Livros Sagrados, estabelecer parallelos entre o Christo vaticinado e o Christo atual, fazer confrontos, aproximar o retrato ao original contestado, e verificar se havia isomorphia nos traços, semelhança nos desenhos, igualdade nas proporções. Era isso o que incumbia a Juizes serios e imparciaes, dispostos a se manterem nas elevadas e serenas regiões da justiça. Mas nada disso succedera. Aggrediram-n'o, alta noite,como um ladrão preso em flagrante, sem mesmo saber de qual crime haviam de accusal-o; e sem julgamento, sem provas, sem defesa, fôra da hora legal, precipitadamente, o condemnaram á pena capital. E o Sr. Renan, com uma sem cerimonia que assombra, nos vem declarar que o Processo fora perfeitamente legal,que estava de accôrdo com as regras juridicas da época, de plena conformidade com as normas processuaes entre os hebreus! E nos cita até a lei violada por Jesus, que serviu de base ao processo e que justifica plenamente a attitude do Synhedrio. E essa lei, segundo elle, é justamente a que se acha consignada no Cap XXIV do Levitico e no XIII do Deuteronomio. Resta apenas conhecer como é que Renan sabe que Christo fôra condemnado precisamente por ter violado a lei citada por elle. Porque é verdade que o Synhedrio e o povo reclamaram a morte de Jesus em nome da lei, mas é também verdade que, nem o Synhedrio, nem o povo, nem pessôa alguma, nunca citou, dessa famosa lei, uma única palavra, de sorte que, até hoje, depois de vinte séculos, não sabemos em virtude de que lei, afinal, Jesus foi condemnado. Renan não se incommoda por tão pouco, e sem mais nem menos, aponta a Lei, cita os Capitulos e exhuma os versiculos. Privilegio exclusivo do poeta e do romancista! Os "Cidadãos Romanos" Justificada a attitude do Synhedrio, Renan passa a preparar o animo do leitor em favor de Pilatos. Começa, pois, dizendo que "todos os actos de Pilatos que nos são conhecidos, o mostram como administrador". Bôa qualidade, sem duvida, mas que não impediu a Philon, que o conhecia mais de perto, de attribuir-lhe uma "natureza rude" e qualifical-o de "prepotente e implacavel". Desejára Pilatos, como observa o escriptor francez, "salvar Jesus", porque, afinal, pareceu-lhe, depois de o ter interrogado, apenas um "sonhador inoffensivo". Lembrára-se então, de trocar Jesus por Barabas, mas falhou o plano, o que lhe causou bastante embaraço, receiando até que "tanta indulgencia com um accusado... o viesse comprometer." (1) Então o bom administrador, que acabára de reconhecer em Jesus um cidadão "inoffensivo", o condemnou, tanto para agradar á patuleia e aos membros do Synhedrio, ao supplicio da flagellação. Supplicio barbaro, tão barbaro, que o proprio Cicero qualificára-o de media mors, meia morte. Depois da flagellação os soldados entregaram-se a outros actos de verdadeira selvageria, pondo-lhe sobre os hombros uma farda vermelha, na cabeça uma corôa de espinhos, uma canna nas mãos, esbofeteando-o, cuspindo-lhe no rosto, arrancando-lhe a barba, etc., etc. Mas veja bem o leitor: O Renan tomou o alvitre de não crêr em tal vandalismo. Porque, "custa a comprehender, diz elle, como a gravidade romana descesse a actos tão vergonhosos... Cidadãos romanos, como eram os legionarios, não desceriam a taes indignidades!". Santa ingenuidade! Em se tratando dos judeus, admitte, sem custo, a atroz perseguição movida contra Jesus, e comprehende-se: os "partidos religiosos", diz elle, não recuam, nunca, perante uma infamia. Mas tratando-se de "cidadãos romanos", de legionarios, seria um conceder demasiado admittir que descessem a "actos tão vergonhosos... a taes indignidades!" De sorte que de duas uma: ou os Evangelistas mentiram, o que não se póde suppôr, porque o proprio Renan reconhece nos Evangelhos o cunho da sinceridade e authenticidade historica, ou então a gravidade romana não era tão... grave como quer dar a entender o philosopho francez. Gravidade romana e cidadãos romanos! Mas o Sr. Renan zomba, sem duvida, do bom senso dos leitores! Seria preciso que o tempo tivesse consumido toda a historia contemporanea para poder mystificar o publico com dez grammas de falso sentimentalismo. Cidadãos romanos? Mas cidadão romano, para citar só alguns e dos mais conspicuos, era Cesar Augusto, tão augusto que fôra denominado o Pae da Patria. Este Pae da Patria, porém, foi visto arrancar, com suas proprias mãos, os olhos ao Pretor E. A. Galio, quebrar as pernas a Tallo, commeter adulterio em publico e em presença dos proprios ludibriados maridos. Cidadão romano era Tiberio, mas praticou acções tão torpes, diz Svetonio, que quasi não se acreditariam "e que deveriam envergonhar não só em narral-as como em ouvil-as". Os romanos daquelles tempos, disse, se não me engano, Cesar Cantú, apenas tiveram liberdade de chorar. Mas foi, sem duvida, uma distracção do grande historiador italiano esta, porque o citado Svetonio nos faz saber que era prohibido, por Tiberio, chorar a morte dos parentes assassinados por ordem imperial. E é conhecido o caso daquella pobre velhinha, Vicia, que foi condemnada á pena capital, pelo crime de ter chorado a morte de Gemini, seu filho. Cidadão romano era Caligula, mas era um monstro, um sanguinario. Estuprou todas as irmãs. Num jantar mandou cortar as mãos a um servo só porque tirára uma bandeja dum logar para collocal-a em outro. Um cavalheiro romano, condemnado a ser devorado pelas féras no Circo, momentos antes do supplicio, só por ter proclamado a sua innocencia, mandou-o vir á sua presença, arrancou-lhe a lingua, e ordenou que de novo fosse atirado ás féras. Depois do espetaculo, mandou, um dia, despedaçar, pelos animaes, todos os velhos que lá se achavam, os invalidos, os páes de familias aleijados e doentes. Cidadão romano era Tiberio Claudio, era, porém, um jogador, um bebedo, um assassino. Mandou matar seus dois genros Pompeu e Silano, trinta e cinco Senadores e mais de trezentos Cavalheiros romanos. O gladiador que no Circo por uma infelicidade escorregasse, o mandava immediatamente esquartejar á sua presença. Cidadão romano era Nero, mas só seu nome inspira terror. Matava e mandava matar pelos mais futeis motivos. Assassinou Cassio Lingino porque guardava uma effigie de C. Cassio, P. Trasea porque a natureza não lhe dera um rosto sorridente. Obrigou quatrocentos Senadores e seiscentos Cavalheiros a se apunhalarem no Circo. Matou Octavia sua mulher com um pontapé no ventre, matou Poppea, outra sua mulher, que se achava gravida, mandou assassinar a propria mãe. Cidadão romano era Domiciano, mas além de assassino era ladrão. Até o proprio Tito, delicia do genero humano, mergulhava suas mãos no sangue de seus semelhantes. E como se vê, estes não eram uns simples cidadãos romanos, mas eram tidos como a fina flôr, a nata do patriciado. Eram os homens da purpura e do sceptro, cercados de quanto havia de mais nobre, de mais selecto na força, na opulencia do saber. Não consta houvesse um só povo, por mais barbaro, que fizesse do homicidio um divertimento publico. Esta particularidade tem sido privilegio exclusivo do povo romano. Aos centenares, ao milhares eram, os gladiadores, condemnados a se matarem nos amphitheatros de Roma, a se matarem com graça e elegancia, para satisfazer o gosto sanguinario de um povo que só pedia panem et circenses. Quasi não havia um jantar em que os vapores do falerno não se misturassem com os vapores do sangue. Pobres infelizes, arrebatados da patria e do lar, viam-se obrigados a se esquartejarem aos pés de impudicas cortezãs e truculentos sybaritas, deitados sobre fotos triclinios, porque esta era a moda em vigor, a sobremesa predilecta dos vencedores do mundo. As crueldades praticadas sobre os escravos são inacreditaveis. Suas carnes palpitantes não raro serviam de isca para as mureias. Por qualquer cousa eram assassinados. Um tal, matou um escravo porque atravessara uma leitôa com um espeto, arma que não podia usar; Gneo Domicio, pae de Nero, matou outro, porque não podia mais beber vinho. Uma escrava destinada ao serviço da toilette, não podia ageitar, conforme o capricho da matrona, a rica cabelleira vinda de além Rheno? Ou não podia delinear-lhe, com chumbo pulverizado, os arcos superciliares, de conformidade com as exigencias da moda? Ou deixava cahir, por um descuido involuntario, o ramalhete de myrto destinado a ornar-lhe a esplendida fronte? Ver-se-ia logo toldar a serenidade do rosto da illustre matrona, e essas lindas mãos, que acabavam de ser lavadas em leite de jumenta, guardado em vaso de finissimo metal, armadas de um comprido alfinete de prata, com este lhe perfuraria cruelmente os braços e os seios. E não satisfeita, mandal-a-ia suspender pelos cabellos para que fosse flagellada pelo lorario, até julgar-sedesaffrontada e dizer: basta! E quanto aos legionarios romanos, basta folhear Tacito, ou qualquer contemporaneo, para ter uma idéa do requinte de ferocidade com que se haviam com os vencidos. E não podia ser diversamente, desde que a carencia absoluta de qualquer sentimento humanitario era elevada á altura de um principio. E como podia ser de outro modo numa época em que o homem era para outro homem um lobo, em que a compaixão, a caridade, era uma virtude não só desconhecida na pratica, mas tomada até como signal de fraqueza, como vicio de caracter, em que o philosopho moralista Seneca ensinava, alto e bom som, que a compaixão era uma covardia, miseratio est vitium pusillanimi, a misericordia uma doença moral, propria da ignorância, incompativel com os espiritos cultos, misericordia est aegritudo ánimae: aegritudo autem in sapientem virum nom cadit!" Pois bem, depois desta pagina historica que fomos obrigados a citar, com risco de perder de vista o nosso principal objectivo, para dar apenas uma amostra da vileza de sentimentos do povo romano, perguntamos ao leitor si a perplexidade de Renan (em prestar fé á narração evangelica no que se refere aos actos vandalicos praticados pelos legionarios romanos sobre a pessôa de Jesus na tragica noite de quinta para sexta-feira) perguntamos si essa perplexidade não seria pueril e ridicula, si não soubessemos que ella esconde um intuito ignobil, qual é o de insinuar no espirito do leitor a duvida sobre um dos mais lugubres quadros da paixão de Christo. Sim, intuito ignobil com que se attenta, a cada passo, contra a historia, com que se adulteram os factos, e com que se põe, na maioria dos casos, o leitor na impossibilidade de, mediante estudos comparativos, separar o joio do trigo em beneficio da verdade, sacrificada, constantemente, aos caprichos de uma sciencia sectaria e falsa. Illegalidades - Tópico Final Si ha uma instituição a que se deva o respeito dos homens , é sem duvida um Conselho juridico. É elle a sentinella avançada da moralidade do Direito, é a espada de Damocles sobre o abuso da força, é o escudo de Pallas que dá guarida ao desamparado, é Judith que livra o povo de seu inimigo, é Cheréa que desembaraça a humanidade dos seus Caligulas. Mas, para que se mantenha sempre na altura do seu fim, torna-se necessario que seus Membros se destaquem pela prudencia e sensatez em seus julgamentos, pela independencia de caracter, pela rectidão nas intenções. Não sendo assim, não teremos Juizes, mas mercenarios de Themis, vendilhões do Templo; a Justiça seria arrastada pela Suburra das paixões, e a Suprema Magestade do Direito encontraria nelles, o seu maior ludibrio. Estas foram, entretanto, as condições moraes, que presidiram ao julgamento de Jesus Christo. O Synhedrio, diz Lemann, citado por Chauvin: "não era, nesse tempo, sinão uma assembléa de homens em sua maior parte indignos de suas funcções. Nelles nenhuma piedade, nenhuma justiça, nenhum valor moral: os proprios historiadores hebreus os condemnaram. José Flavio qualifica-os de ambiciosos, ladrões, soberbos e violentos. Os proprios chefes, eram homens sem moralidade e sem caracter. A nomeação de Caiphás a Grande Sacerdote, a Presidente, portanto, do Conselho, fôra fructo exclusivo dos manejos, das intrigas do seu astuto sogro Annaz, e muito provavelmente do dinheiro profusamente expendido. Sabemos quem era Pilatos. Creatura de Sejano, protegido de Tiberio, não aos seus meritos pessoaes, mas á fortuna do momento devia aJurisdictio e o Imperium das Judéa. Verdadeiro camaleão, ora pusillanime, outra feroz; porém, sempre venal. Não possuindo dinheiro, roubava-o. Assim fez quando lançou mão dos thesouros do Templo para a construção de um Aqueduto. Quando lhe tornava mais commodo, recorria á traição. Uma vez vestiu soldados romanos á moda dos hebreus, e, assim disfarçados, mandou massacrar os cabeças de um motim popular. Philon nol-o mostra pyrronico e orgulhoso. Estes, pois, eram os Juizes perante os quaes tinha de comparecer Jesus. Que se havia de esperar no Templo da Justiça, de uns taes Sacerdotes? Abuso de poder, perseguição, injustiça, eis o que podia esperar Jesus e eis o que realmente se deu. Queira o benigno leitor acompanhar-nos e verificar comnosco de quantas irregularidades e illegalidades fôra víctima o filho de Maria, no espaço de doze horas. Judas recebeu trinta dinheiros para a entrega de Jesus. De quem os recebeu? De quem partiu o suborno? Dos Principes dos Sacerdotes, dos Anciãos, isto é, desses mesmos que deviam formar o Supremo Tribunal que havia de julgar Jesus. Ora, a Lei prohibia o suborno. E si era vedado aos Juizes receber donativos ou dinheiro dos que estavam implicados, directa ou indirectamente, nas malhas da Justiça, segundo o dispositivo: "Non accipies personan, nec munera" (Deut. XVI, 18) , a fortiori era vedado aos Juizes offerecer dinheiro em prejuizo da justiça: primeira irregularidade. Jesus foi obrigado a um interrogatorio perante Annaz. Ora, esta era uma violencia, porque Annaz não era o Summo Sacerdote: segunda irregularidade. Podiam ser duas horas da madrugada quando levaram Jesus á casa de Caiphás para submettl-o, naquela mesma hora, ao interrogatorio. Ora, as causas judiciarias, por lei, não podiam ser tratadas durante a noite, mas sim desde o levantar ao pôr do sol. Terceira irregularidade. Jesus, nessa mesma noite, e pelos poucos Membros do Synhedrio recolhidos na casa de Caiphás, foi condemnado á morte. Ora, a sentença era nulla de pleno direito, porque uma sentença capital só podia ser pronunciada um dia depois do primeiro comparecimento do accusado. Quarta illegalidade. (Ch. Letourneau: L'Evolution juridique, Cap. X, pg 288) Uma sentença capital não podia, sob pena de nullidade, ser proferida na vespera do grande dia de Paschoa. Mas foi pronunciada contra Jesus. Quinta illegalidade. Deviam ser rejeitadas as testemunhas falsas. Os Juizes, porém, as procuraram contra Jesus (Matth. XXVI, 39 - Marc. XIV, 55) apezar da determinação formal que prohibia o falso testemunho (Exod. XX, 16 - 21). Sexta illegalidade. Contra as falsas testemunhas a lei era inexoravel. Obrigava o Juiz a ser inflexivel contra ellas, devendo-as condemnar á pena do talião:"Si steterit textis mendax contra hominem, reddent ei sicut fratri suo facere cogitavit... Nom misereberis ejus, sed animam pro anima, oculum pro oculo, dentem pro dente, manum pro mano, pedem pro péde exiges. (Deut. XIX, 16 e seg.) Entretanto, nada de desagradavel aconteceu ás testemunhas que depuzaram o falso contra Jesus. É a setima irregularidade. As testemunhas deviam, segundo o dispositivo legal, ser interrogadas separadamente, sem serem vistas pelo accusado. Não se observou este dispositivo no processo de Jesus. É a oitava. O Grande Sacerdote, presidente do Synhedrio, num assomo de zelo hypocrita, ao ouvir Jesus proclamar-se Filho de Deus, rasgou as vestes. Ora, a lei prohibia terminantemente este acto: "Caput non discoperit, vestimenta non scindet" (Lev. XXI, 10). É a nona. O Presidente do Conselho dispensou ulterior depoimento de testemunhas. (Matth. XXVI, 65 - Marc.XIV, 64,64) Mas isso era contra a lei. É a décima. Não podia ser processado o accusado que não tivesse previamente feito o juramento legal. Este dispositivo não foi observado com respeito a Jesus. É a undécima. A lei punia quem tivesse batido em outrem: "Qui percusserit hominem, punietur" (Lev. XXIV, 21), e era severa especialmente quando o offendido era o accusado. Quem désse a este uma bofetada, era condemnado á multa de duzentos a quatrocentos siclos. Entretanto Jesus foi esbofetado por um servo brutal do Grande Sacerdote, sem que houvesse, de parte de quem quer que fosse, o minimo protesto. É a décima segunda. Quanto ao processo criminal perante o tribunal romano, não se observara quasi nenhuma das normas que estavam em vigor desde a epoca dos Reis. Todo o processo era dividido em duas phases ou estadios: processo in jure, isto é, perante o Magistrado, e o processo in judicio, isto é, perante os jurados, encarregados da decisão definitiva. O processo in jure, começava pela accusação do accusador, ou accusadores, ao Presidente do Tribunal, Quaesitor. Note-se, porém,o accusador devia, antes de tudo, requerer a licença para fazer a accusação, alcançada a qual, procedia ao seu papel accusatorio, criminis delatio, o qual era apresentado por escripto, contendo em termos precisos a natureza e as circumstancias do crime. Si a accusação era procedente, o Quaesitor a acceirava, fazendo inscrever, nos Registros dos processos criminaes, o nome do réo, nomem recipere. Feito isto, citava-se o réo para comparecer: Si o réo confessava o crime, o Magistrado procedia, neste caso, de conformidade com a lei, condemnando-o; si não, era marcado o dia da convocação para o processo. Aqui terminava a primeira phase, ou processo in jure. O processo in judicio começava com a formação do Conselho juridico. Os nomes dos jurados ou eram extrahidos por sorte, como nos tempos primitivos, ou eram escolhidos pelo Magistrado. No primeiro caso, as partes tinham o direito de rejeitar cincoenta dos nomes apresentados pela lista do adversario; no segundo, podiam recusar um certo numero impar, determinado por lei. Formado o Jury, procedia-se ao debate que constava de tres partes distinctas: accusação, defesa, provas. Terminado o debate, os jurados prestavam o juramento e tratavam da sentença que era quasi sempre dada por escrutinio secreto. O imputado julgava-se condemnado quanto tivesse, contra, a maioria de votos, julgava-se absolvido quando houvesse paridade, ou a maioria em favor. (1) O processo, desde a sua instauração até á sua conclusão, devia passar por quatro termos ou periodos. Entre os tres primeiros não havia intervallo determinado de tempo, entre o terceiro e o quarto, porém, tinham de passar tres dias; si durante o ultimo periodo, por um motivo qualquer, não se concluiam os trabalhos, todo o processo era, por lei, considerado nullo. Pois bem, no Processo de Christo, não foi observada nenhuma das disposições a que alludimos e das outras a que iremos alludindo no correr deste escripto. Não houve nem processo in jure nem in judicio, nem ordinario, nem extraordinario. (2) As causas criminaes só tinham principio da hora terceira (nove horas da manhã) em diante. A Causa de Jesus começou ás sete. É a decima terceira irregularidade esta que registramos. Jesus não podia ser levado, á força, á presença de Pilatos. Na hypothese estivesse na competencia dos seus inimigos trazel-o ante o Procurador romano, a coacção era admittida só no caso de resistencia do accusado. Neste caso, a lei exigia que a rebeldia fosse testemunhada por algumas pessoas, e só depois disso era autorizada a violencia: "Si in jus vocat, ito. Ni it, antestamino: igitur em capito". (Lei das XII Taboas - Tab. 1. n. 1. Leggi delle XII Tavole, Testo e Traduzione del Dottor Nereo Cortellini.) Todos estes quesitos foram violados. Decima quarta. A lei prescrevia que as partes se accordassem sobre o logar do julgamento: "Rem ubi pacunt orato". (Lei das XII Taboas - Ib. n. 6.) Não houve, porem, este accordo. Decima quinta illegalidade. Quem injuriasse a outrem, pena: 25 asses de multa: Si injuriam faxit,viginti quinque poenae sunto". (Tab. VII, n. 4.) Pilatos vira a que estado tinham reduzido Jesus. Mas nem siquer se lembrou de apurar responsabilidades. Decima sexta. Era condemnado á morte quem falsamente accusasse ao seu semelhante de uma falta da qual resultasse, para o accusado, deshonra ou vergonha. (Tab. VIII, n. 1 b. Allus.) Ora, os Principes dos Sacerdotes procuraram deshonrar a Jesus, attribuindo-lhe um triplice crime: 1º. , de ter sublevado o povo contra o poder constituido; 2º., de o ter subornado para não pagar o tributo; 3º. , de se ter proclamado rei. (Luc. XXIII, 2.) Não chamou, porém, o rigor da lei sobre os calumniadores. Decima. Chegando a provar-se que alguem tinha deposto o falso, era severamente punido. Sendo julgado em Roma, era precipitado da rocha Tarpeia. "Ex XII tab. - si nunc quoque - qui falsum testimonium dixisse convictus esset, e saxo Tarpeio deiceretur". (Tab. VII, n. 23. Allus.) Pilatos proclamára solemnemente, mais de uma vez, que Christo era innocente. (Math. XXVII, 18; Luc. XXI, 2) Sabia , pois, que os que depunham contra elle, depunham o falso. Deixou, porém, violar impunemente a lei, em detrimento exclusivo de Jesus. Decima oitava. A flagellação só podia ter logar depois do julgamento e condemnação á pena capital. Violou-se esta lei com respeito a Christo. Decima nona. E mesmo não houvesse (como havia) a disposição precedente, o supplicio da flagellação, por lei, só podia ser applicado a um escravo. Ora, Jesus era pessoa livre. Vigesima. Não podia ser processado nem condemnado ninguem, sem previa designação e inquirição das testemunhas. Nem esta formalidade foi preenchida por Pilatos. Vigesima primeira. O Juiz tinha, por lei, de conceder á parte o tempo necessario para a escolha de um advogado. Pilatos não o concedeu a Christo. Vigesima segunda. Finalmente, e recapitulando, ninguem podia ser levado á morte sem ter sido antes legalmente processado, e legalmente condemnado: "Interficit, indemnatum quemcum que hominem, etiam XII tabularum decreta vetuerunt". (Tab. IX, n. 6. Allus.) Disposições que foram fria e criminosamente desprezadas em prejuizo de Jesus. Depois do que acabamos de expender, poderá fazer-se uma pallida idéa do critero juridico usado por Renan, affirmando, no seu Romance, que a condemnação de Christo estava de accordo com a lei. Mas era necssario que tudo isso se désse. A iniquidade dos homens, que nesse negro momento tomaram de assalto a pessoa de Jesus, tornava-se, nas mãos de Deus, e sem sabel-o, o instrumento obediente encarregado de aplainar o caminho por onde havia de passar, triumphante, o Nazareno. Aproximava mais depressa o Christo do Calvario, que desde as epocas mais remotas, era o ponto centripeto dos olhares dos Prophetas e dos anhelos da humanidade. A morte de Jesus era necessaria. E nos, que á distancia de vinte seculos, nos lembramos ainda, com religioso terror, na tragica noite de 14 de Nisan, abrimos, entretanto, o animo á esperança e ao sorriso ao raiar da aurora do dia de Paschoa, e nos sentimos levados a entoar com a Egreja: O felix culpa, quae talm, ac tantum meruit habere Redemptorem! FIM |
8 de ago. de 2011
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O PROCESSO DE JESUS
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